Celulando

1.7.06

Revanche do RNA

Revanche do RNA

REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de S.Paulo
(retirado de http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2003/dna/fe0703200303.shtml )

Esqueça os transgênicos e a geneterapia. Uma técnica com pouco mais de cinco anos de idade está fazendo pesquisadores vibrarem com a possibilidade de manipular os efeitos de genes sem mexer no genoma, abrindo novas frentes contra o câncer e a Aids. É o que promete a interferência de RNA (para os íntimos, RNAi).

Embora a compreensão do fenômeno ainda esteja nos primórdios, o que não falta são adjetivos para designá-lo: sistema imune do genoma, técnica poderosa e específica, varinha mágica. "Vai dar um Nobel na certa", resume o biólogo Tiago Campos Pereira, 24, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Pereira é um dos pesquisadores brasileiros a investigar as potencialidades da técnica que, como tantas outras descobertas importantes da biologia, começou com o verme C. elegans.

Em 1995, os cientistas estavam tentando silenciar genes do animal usando RNA anti-senso, uma molécula que é a imagem invertida do RNA produzido pela célula ao transcrever o gene que se quer silenciar. Como é formado pelas bases ("letras" químicas) complementares, o RNA anti-senso se acopla ao RNA senso, formando uma fita dupla. Isso impede que o RNA senso seja lido pelos ribossomos e inicie a produção da proteína especificada pelo gene.

Acontece que esses primeiros experimentos mostraram um paradoxo. Algumas sequências de RNA senso, idêntico ao produzido pela célula, pareciam ter também o mesmo efeito silenciador. Foi então que Andrew Fire, da Carnegie Institution de Washington, nos Estados Unidos, suspeitou que alguma forma de contaminação pudesse estar ocorrendo entre as duas formas de RNA.

Fire e seu colega Craig Mello, da Universidade de Massachusetts, se puseram a testar a hipótese da forma mais simples possível: misturando RNA senso e anti-senso e injetando a solução nos C. elegans. "Em retrospecto, não foi tão inesperado assim que tenha funcionado", contou Fire à Folha.

"Funcionar" não faz justiça ao que de fato aconteceu. O gene foi silenciado no organismo inteiro do C. elegans (e não só localmente, como acontecia com o RNA anti-senso). A primeira geração depois dos animais tratados também sofreu os efeitos do silenciamento. Tudo graças ao RNA de fita dupla formado pela mistura de senso e anti-senso.

De lá para cá, os segredos do mecanismo ficaram um pouco mais claros. Pereira explica que a RNAi se mostra tão forte e específica por estar ligada a enzimas presentes naturalmente no organismo de quase todos os seres vivos cujas células têm núcleo (ditos "eucariotos"). Elas parecem garantir que só o gene correspondente ao RNA de fita dupla seja silenciado. "O mecanismo parece ser um sistema imune do transcriptoma [atuando na transcrição, a passagem dos genes de DNA para RNA] e também do genoma."

"Em plantas, ele atua como defesa contra alguns vírus que criam RNA de fita dupla ao se replicar no interior das células", diz Pereira. Fire concorda: "O que acontece na RNAi, como a quebra do RNA de dupla fita em muitos pedaços menores, é muito semelhante ao sistema imune".

Para Pereira, a técnica é multi-uso por natureza. Graças à facilidade para desligar genes, ela pode ser usada para estudar cada um deles sem as complicações que existem hoje para modificar diretamente o DNA. Seria também possível criar plantas "transgênicas" sem alterar seus genes.

Mais promissor ainda seria o uso da RNAi para contra-atacar vírus, como o da Aids, ou impedir a ação de genes envolvidos no câncer. Testes feitos in vitro e em camundongos, no ano passado, mostraram resultados animadores nas duas abordagens.

Fire, porém, resume os problemas que ainda existem pela frente numa frase: "Boas moléculas costumam virar drogas ruins". O grande desafio é tornar a reação sustentável, como ela se mostra nos C. elegans, em mamíferos como o homem. Outra é fazer com que ela atinja o órgão desejado ou, no caso de infecções virais, funcione no organismo todo.

Pereira e sua orientadora de doutorado, a médica Iscia Lopes Cendes, 38, porém, não se abalam. "Daqui a dez anos, a RNAi vai ser rotina em qualquer laboratório", afirma Cendes.

Num projeto financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), a dupla está usando a RNAi para criar um modelo animal da síndrome de Rett, doença que afeta o desenvolvimento do cérebro e é uma das principais causas de retardo mental entre meninas. Outros grupos em São Paulo, Minas Gerais e Rio também estão testando a técnica em plantas e animais.

"Acho que as pessoas vão perceber que a técnica é muito boa e importante, mas não é mágica", diz Fire. Com modéstia, o pesquisador de 43 anos prefere nem pensar no Nobel. "Para mim, isso é irrelevante. No momento, tenho de preparar os experimentos de amanhã e fazer o jantar."

Muito além do gene

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